Autor: Alberto Grimm[1]
Conteúdo Atualizado: 25 de Abril de 2024
A sensação não era nada boa. Fazia muito frio, e ele, sem compreender muito bem o que estava acontecendo, caminhava por uma trilha de terra em meio a uma densa mata fechada de onde sequer podia enxergar a luz do sol ou pedacinho de céu claro, se é que naquele lugar existiam tais coisas. Estava meio confuso; meio não, completamente. Não era capaz de pensar de maneira ordenada. Sua mente não conseguia se fixar em ponto algum e suas lembranças mais pareciam um amontoado de eventos sem uma sincronia ou sequência lógica, pelo avesso, surreal. Em resumo, dentro de sua cabeça, nada parecia fazer sentido.
Tentou lembrar-se de como chegara naquele lugar e nada, nadinha; nem adiantava insistir. Como seria possível alguém chegar a algum lugar sem ter uma clara lembrança do seu ponto de partida ou origem, ou mesmo de como ali chegara? Poderia ser aquela sensação um indício comum entre as almas desgarradas, como, por exemplo, de alguém já morto? Percorreu bisonhamente a parte visível do seu corpo com os olhos em busca de respostas para aquele dilema e percebeu que vestia um agasalho para frio. Motivo pelo qual deduziu que havia se preparado para estar ali. A questão era, ali, onde?
Olhou para trás e viu apenas uma longa trilha, estreita, sinuosa, que se perdia em meio ao mato denso, uma visão semelhante a aquela que tinha à sua frente, e dos lados. Dos lados, apenas árvores de todas as cores e alturas era possível se ver, e tudo isso realçado por um silêncio sepulcral que o fizera concluir, ou que podia estar com problemas de audição, ou que ali, a exemplo da presença de luz, também não existiam sons. Foi quando percebeu que sequer era capaz de lembrar-se do próprio nome; do lugar onde morava, nem pensar. Era como se estivesse vazio, oco, desprovido de cérebro e das suas respectivas memórias. Sentiu um aperto à boca do estômago e seu coração acelerou deixando-o com uma sensação momentânea de falta de ar e princípio de pânico.
O silêncio absoluto foi repentinamente quebrado por um barulho que se assemelhava a vozes; muitas vozes, estranhas, um murmúrio denso, sinistro, cuja intensidade oscilava de acordo com a direção do vento; desordenado e impossível de decifrar. Parecia que um grupo de pessoas aproximava-se rapidamente do ponto onde se encontrava, e depois recuava. Ficou atônito, indeciso, enquanto seus olhos em vão procuravam por todos os lados seus protagonistas. Uma sensação de pavor o invadiu; sentiu-se encurralado; não sabia se avançava ou voltava.
Aflito e desorientado logo pensou em correr. No entanto, estava com um problema; na verdade um grande problema, uma vez que não conseguia distinguir de onde vinha aquele murmúrio. Desse modo, mover-se em qualquer das duas direções, avançando ou recuando, as únicas opções de fuga disponíveis, diante daquela circunstância, não seria uma manobra racional.
Cerrou os punhos e num ímpeto de coragem, decidiu correr para frente sem olhar para trás. Entretanto, sua aflição aumentou ao perceber que o murmúrio parecia acompanhar seus apressados passos, se aproximando cada vez mais. E em meio às vozes atrás de si, escutou alguém pronunciar um nome, que até poderia ser o seu, caso soubesse qual era. E aquela voz estranha, arrastada, sonolenta, de um timbre metálico entrecortado por picos de chiados difusos, disse: “Jon, não precisa se apressar, com certeza, este é o lugar onde podemos encontrar aquilo que todos nós procuramos...”
Por isso mesmo quase morre de susto quando alguém segurou com firmeza no seu ombro direito, e após uma brusca sacudida, falou: “Vamos, está na hora...” O grito que saiu de sua garganta, resultado do imenso pavor que sentiu, era de fato peculiar e exótico. Não foi um grito que despontou de imediato e de maneira natural, mas uma espécie de grito progressivo, que ia aumentando de volume aos poucos, como se obedecesse ao girar do botão de volume de um rádio cuja engrenagem estivesse falha.
Acordou tentando desesperadamente se segurar em alguma coisa, como se estivesse caindo de uma cama, da qual de repente lhe tirassem o lastro. Segurou em um pé; isso mesmo, um pé descalço, de alguém que dormia ao seu lado, juntamente com mais uma centena de outras pessoas, naquilo que parecia ser uma imensa fila de espera.
A princípio, ainda estava desorientado, sem saber onde estava; sem ter uma clara noção de onde ficava o norte ou o sul. Parecia ter perdido o juízo, e sua mente mais se assemelhava a um sistema operacional de computador contaminado com um vírus que o tornava demasiado lento. Mas, quando a mesma voz que o acordara tornou a falar, sua razão começou a voltar para casa. “As portas já vão ser abertas...”, balbuciou aquele misterioso personagem, que aos poucos ia se formando e tomando uma forma humana diante dos seus olhos sonolentos, embaçados, ofuscados e doloridos pela repentina presença de luz.
Lembrou então que estava, juntamente com uma centena de outras pessoas, numa imensa fila de compradores compulsivos, à espera de um grande lançamento; um novo e revolucionário produto, uma singularidade, que viciados fanáticos e alienados em consumo como ele faziam questão de ter em primeira mão. Tratava-se de um novo aparelho eletrônico, um celular, cujo diferencial era não possuir botões ou qualquer outra forma de interação com as mãos. Funcionava por comando de voz, com a promessa de que futuramente viria a ser ativado por meio de telepatia, e que apenas seu dono poderia operá-lo. Nada que o tornasse superior aos modelos anteriores, não fosse o exclusivo recurso de mostrar aos seus usuários, em tempo real, através de dezenas de exclusivos gráficos coloridos e animados, as nuances da temperatura do centro da Terra.
Sem compreender muito bem por que precisava daquele aparelho, o fato é que ele estava naquela fila, sabe-se lá há quantas horas, disposto a garantir o seu precioso mimo. Então, subitamente, como se seu cérebro iniciasse um processo de autolimpeza, onde coisas sem explicações não teriam mais espaço para ficar, questionou por que precisaria tomar conhecimento da temperatura do núcleo da Terra 24 horas por dia, em tempo real. Que utilidade teria aquilo para si? Percebeu que, pela primeira vez em sua vida, estava pensando, questionando alguma coisa. Lembrou que isso talvez fosse um reflexo ou efeito daquele sonho “diferente”, bizarro, mas fabuloso, que acabara de ter.
E muitos outros pensamentos questionadores, estranhos para ele, uma vez que se acostumara desde pequeno a simplesmente seguir, sem refletir, a onda da vez, tomaram sua mente sem o seu consentimento. Era como se fossem os antigos moradores, há muito desalojados, mas que agora, patrocinados por um novo e estranho alento, reivindicavam sua antiga morada. Não era uma sensação ruim, mas antes disso, estranhamente motivadora, libertadora. Lembrou das campanhas promocionais anteriores, que o arrebatara, levando-o a consumir sem pensar, sem avaliar se de fato eram necessidades ou simples compulsões sem causa ou utilidade aparente.
Lembrou dos tantos aparelhos, todos ainda em perfeito estado de funcionamento, jogados nos fundos das gavetas e que eram substituídos quase como uma obrigação, ritual ou penitência religiosa a cada nova campanha, apesar de não haver motivo coerente, lógico, racional, para isso. Agora, percebia este fato, com extraordinária clareza.
Ficou assustado com aquele percebimento, e pela primeira vez, sentiu que sempre fora uma marionete movida pela vontade de terceiros. Sentiu um misto de revolta e um tanto de liberdade, pois sabia que, a partir daquele ponto, não mais aceitaria desempenhar aquele ingrato papel de “boneco movido à corda alheia”. A sensação era de que, depois de um longo e perturbador torpor cerebral, uma espécie de embotamento ou processo de hibernação mental por falta de uso da razão ao qual fora involuntariamente submetido desde a infância, finalmente, despertara.
Achou graça ao observar seus amigos, ali ao seu redor, naquela imensa fila de espera, onde passaram a madrugada, a troco de nada, discutindo tolices como os benefícios de possuir um celular que, além de fazer aquilo que todos os demais já faziam, era capaz de mostrar, em tempo real, a temperatura do núcleo da Terra.
Saindo dali depois se reuniriam, como das outras vezes, cada um tentando configurar seu aparelho com um padrão diferenciado, embora fossem todos iguais. Depois iriam para suas casas, e lá permaneceriam diligentes, em estado de espera, a exemplo de zumbis amestrados controlados remotamente, até a próxima campanha; o próximo comando ou ordem de como deveriam se comportar. E depois, pensou, quem poderia garantir que aqueles números atestavam, de fato, a temperatura do núcleo do planeta, afinal de contas, quem iria descer até lá com um termômetro para conferir?
Realmente, algo absolutamente novo em sua vida estava acontecendo, estava pensando por conta própria. Experimentava uma liberdade estranha; mas não por ser esquisita a sensação, e sim porque sentia uma segurança e autoconfiança nunca antes vivenciada. E sem dizer nada, já que nenhum dos demais teria ouvidos para seus argumentos ou ponderações, se afastou sem ser notado; sem explicar nada a ninguém. Estava, pela primeira vez, em toda sua existência, completamente lúcido e consciente de uma ação sua.
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Alberto Grimm - Email: albertogrimm@gmail.com
Publicitário e Escritor. Especialista em Psicologia do Trabalho e Relações Humanas. É também também pesquisador e consultor em Recursos Humanos e em Educação Integral e Consciencial.
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