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Autor: Alberto Grimm[1]
Conteúdo Revisado e Ampliado: 16 de Janeiro de 2023
Naquele dia, um pouco antes do amanhecer artificial, ele percebeu que havia alguma coisa estranha; estranha por não ser capaz de compreender sozinho. Mas, tinha certeza, de que um algo mais estava presente no ambiente. Abriu a janela virtual do seu quarto e ao olhar para o lado de fora viu que a definição da imagem da rua não parecia de alta resolução. As cores se mostravam desbotadas, esmaecidas, difusas, desfocadas e instáveis, e em alguns pontos, quase opacas e sem efeito de profundidade. Fechou a janela virtual e virtualmente sentou em sua cama tentando pensar um pouco.
Mas, como não conseguia pensar sozinho, resolveu acessar um banco de memórias remoto para ver se lá já existia alguma ideia pronta que servisse de base para o pensamento que sozinho não era capaz de elaborar naquele momento. Não se tratava de uma pesquisa simples, pois sequer sabia o que procurar. Mas, aquele ato o ajudou a comprovar que, de fato, algo estranho estava acontecendo. Constatou isso ao descobrir que o banco de memórias, naquele momento, se mostrava inacessível.
Por alguma razão desconhecida, o servidor de cérebros artificiais estava desconectado. Ficou desesperado, pois acabara de perceber o quanto era dependente do cérebro virtual que ficava hospedado na Central de Pensamentos, e de onde extraía todas suas ideias, uma vez que era incapaz de pensar por conta própria. Naquele momento, descobrira que sua vida psicológica e emocional dependia inteiramente de um servidor, um computador remoto, uma simples máquina, cuja localização ele simplesmente desconhecia.
Olhou à sua volta vasculhando o ambiente virtual onde se encontrava e percebeu que o cenário construído de acordo com suas preferências começara e se desfazer, dando espaço para que uma cena padrão ocupasse seu lugar. Aquilo era um sinal claro de que alguma anomalia estava acontecendo no Centro de Controle de Mentes. Viu então que o amanhecer artificial mostrava-se instável, com a aparência de uma tarde nebulosa, um indício incontestável de avarias graves no sistema, ou mundo virtual, do qual era inquilino.
Acomodou-se melhor em sua cama virtual tentando pensar sozinho em alguma coisa. Mas, era dependente demais, jamais fizera isso antes, não sabia nem por onde começar; sequer sabia o que era pensar. Naqueles tempos, era mais prático e comum pegar uma ideia, postura comportamental, desejo, preferência, opinião ou pensamento, já pronto, afinal de contas, existiam inúmeras opções. Era até possível escolher por categoria, status social, ou entre os mais comentados e recomendados pelos formadores de opiniões, gurus e conselheiros do mundo virtual.
Na escola daquele mundo virtual, todos recebiam links com os endereços dos pensamentos e posturas que poderiam usar nas diversas situações do dia a dia, e desse modo, bastava copiar e colar. Não era preciso aprender, memorizar ou criar nada novo. Sempre fora desse modo, desde que todos foram inoculados com os nano implantes cerebrais, uma tecnologia avançada que simulava um modelo de mundo virtual para cada hospedeiro, desde o nascimento. E dentro daqueles mundos virtuais poderiam viver 24 horas por dia. Eram mundos definidos de acordo com o status social e função de cada indivíduo, e em alguns casos, construídos sob demanda.
Lembrou de um dia, quando a bateria que mantinha o mundo virtual ligado deu pane. Felizmente fora um problema passageiro, não durou mais que um segundo. Entretanto, a visão da suposta realidade que tivera fora horrível. Viu-se de repente num imenso recinto fechado e sem janelas, dividido em incontáveis compartimentos em forma de casulos, que alojavam indivíduos impassíveis, inertes, a exemplo de zumbis em estado cataléptico. Felizmente o sistema voltou a funcionar quase num piscar de olhos, e tudo aparentemente não passara de um breve sonho, ou pesadelo, considerando os aspectos da experiência.
Mas, agora o servidor do mundo virtual onde vivia, estava com problemas operacionais, e um novo padrão de mundo estava se sobrepondo ao modelo onde já estava acostumado a viver. Se no mundo tradicional sempre acordava com um dia ensolarado, de uma natureza viçosa, exuberante e ao canto de pássaros, nessa versão alternativa, o que se via era uma tarde melancólica com ventos frios, de um tempo fechado e cinzento. Entretanto, naquele momento, a questão mais relevante era o fato, agora comprovado, de que ele não era capaz de pensar de maneira autônoma, razão pela qual, não tinha a menor ideia de como proceder, ou que fazer, diante de uma situação daquela natureza.
Foi quando escutou uma voz conhecida, era do gerenciador do sistema operacional, conhecido como Avatar, Guru ou Guia Espiritual, e informava: “Atenção todos os residentes, o sistema neste momento apresenta instabilidade temporária, e enquanto realizamos os ajustes necessários, todos viverão durante algum tempo, num mundo virtual alternativo. Logo, um Amparador, Orientador ou Guia Virtual, se apresentará para orientá-los dos procedimentos neste novo mundo. Esperamos voltar ao normal em alguns minutos...”
O seu quarto com janela para um jardim florido à beira mar, de uma permanente e perfumada brisa, logo fora substituído por uma paisagem desolada, melancólica e apática, de um entardecer cinzento com pouca luz, um indício de que o sistema procurava com isso economizar energia. Correu para a cozinha virtual e lá encontrou uma simples mesa com torradas de pão transgênico acompanhadas por chá frio adoçado com açúcar refinado de segunda categoria, um cenário deplorável, muito distante da exuberante variedade de outros dias, onde aquele espaço se tornava exíguo para acomodar tamanha variedade de alimentos orgânicos frescos.
Sua Mente virtual de última geração, com banda ultralarga de recepção 45G, fora substituída por um modelo simples, com baixa resolução gráfica e conexão Beta G semidiscada sem filtro contra ruídos. O padrão para demonstrar desespero ele ainda lembrava claramente, por isso não precisou acessar o banco de pensamentos para simular tal sentimento. Se ao menos soubesse pensar, poderia encontrar uma solução alternativa, algo menos traumático e capaz de ajudar naquele processo de readaptação. Mas, seu cérebro se recusava a fazer isso, estava calcificado, atrofiado demais, e por falta de uso, fossilizado, motivo pelo qual, de modo irreversível, perdera por completo o atributo da lucidez voluntária e capacidade cognitiva.
Gritou pela sua mãe virtual, mas não obteve resposta. Dirigiu-se ao seu quarto e a porta estava trancada por dentro. Bateu na porta virtual, e sequer o som do impacto das batidas na madeira conseguia escutar.
Escreveu num pedaço de papel virtual a frase: “Mãe, você está ai?”, e colocou por baixo da porta. Mas, como a conexão estava lenta a espera parecia uma eternidade. Por fim ela respondeu; foi uma resposta automática, pré-gravada, um simples e lacônico “Positivo!” Diante de tamanha frieza e falta de emoção, ele concluiu angustiado: “Se nem os aplicativos para simular emoções estão ativos, a coisa parece realmente muito séria...”
O que fazer diante de tal situação? E se o sistema perdesse a identidade virtual de cada um dos conectados? Nesse caso, ele deixaria de existir, perderia seus amigos virtuais, seu emprego virtual, sua vida pessoal virtual, sua família. Percebeu que já se sentia diferente. Isso estava acontecendo porque, certamente, devido ao problema, o sistema fora obrigado a trocar sua personalidade multidimensional original, cujo status social lhe conferia o direito de possuir uma resolução gráfica hiperrealista do ambiente, sensações reais, com som polifônico e sensibilidade de última geração, por uma mais simples, básica, rudimentar, uma opção “default”, com apenas 16 cores e sem a experiência sensorial.
Era um modelo alternativo, dotado de uma mente primária, sem imagens em alta definição, cuja proposta existencial se baseava em princípios religiosos primitivos, onde a prática de orações, requisições de promessas a troco de penitências ou oferendas, eram direcionadas a personagens chamados de santos ou entidades mágicas, sempre que um problema existencial ou material se fizesse presente.
Então tudo apagou, e apenas uma música ambiente quase inaudível era possível escutar, e no fundo escuro do seu quarto virtual, podia enxergar um pequeno ponto verde piscando alternadamente. E esta foi a última coisa que viu antes que surgisse uma mensagem luminosa no mesmo ponto, onde era possível ler: “Aguarde, sistema operacional do mundo virtual sendo reinicializado...”
É o pouco do que ainda consegue lembrar, embora de maneira difusa, quase sem resíduos na memória, incapacitando-o a diferenciar se aquilo realmente acontecera ou se fora apenas um delírio virtual, uma espécie de engasgo na transmissão de dados, ou sonho como era popularmente conhecido aquele fenômeno. Entretanto, estranho mesmo era aquela forte sensação de que esquecera alguma coisa, embora, ao acordar, tudo estivesse aparentemente normal.
E lá estava outra vez em seu quarto habitual, com janela de frente para o mar, brisa permanente e perfumada, adornada com o cântico dos pássaros e o bater permanente e ritmado das ondas.
Nesse momento, sua mãe virtual, parecendo confusa, entra no quarto e comenta: “Coisa mais estranha, mesmo sendo incapaz de saber se estava ou não dormindo, estou com a clara sensação de que acabo de ter um sonho, ou pesadelo, como se há pouco tempo atrás, algo esquisito tivesse acontecido, embora não seja capaz de compreender, lembrar com precisão, ou explicar...”
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Alberto Grimm - Email: albertogrimm@gmail.com
Publicitário e Escritor. Especialista em Psicologia do Trabalho e Relações Humanas. É também também pesquisador e consultor em Recursos Humanos e em Educação Integral e Consciencial.
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