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Autor: Alberto Grimm[1]
Conteúdo Revisado e Ampliado: 16 de Janeiro de 2023
Depois de milhares de anos usando minimamente o cérebro, os habitantes daquela civilização, finalmente passaram por uma importante mudança. Na verdade foi uma mutação, cujos efeitos se fazia notar de modo dramático em toda sociedade. As estatísticas oficiais ou informações que circulavam em segredo apenas entre os membros graduados do centro de comando do poder central, revelavam à luz da ciência, o resultado de um programa pedagógico – de fato uma reformatação mental – iniciado dezenas de anos antes.
Fora um trabalho bem organizado, discreto, silencioso, paciente, executado a muitas mãos, seguindo à risca diretrizes bem planejadas, claramente idealizadas, e cujos frutos, finalmente, já estavam maduros e à disposição dos seus cultivadores.
Agora era um fato consumado, comprovado. E salvo raríssimas exceções, os indivíduos não conseguiam mais pensar e agir por conta própria. Mas, o mais importante de tudo isso era que seus cérebros atrofiados agora eram os naturais, aqueles concebidos em seus hospedeiros, desde o útero matriarcal, e não mais o lote defeituoso da geração anterior, uma safra cuja massa encefálica fora intencionalmente modificada geneticamente para encolher. Naquela ocasião, o processo de encolhimento fora fundamental para o advento da fossilização e eliminação ou supressão de qualquer potencial cognitivo.
E se aquele primeiro projeto não dera certo, isso ocorreu porque uma geração de imbecis absolutos fora o desastroso resultado do experimento. Eram indivíduos tão estúpidos que se tornaram dependentes físicos, um verdadeiro problema social; um fardo dos mais pesados para o governo, uma vez que sequer sabiam diferenciar o calor do frio. E muitas gerações foram necessárias para a erradicação completa daquele lote defeituoso, assim como dos seus descendentes, uma vez que quando o assunto era a procriação ou multiplicação da espécie, para isso, eles se mostraram mais que capacitados.
“Nossa proposta inicial era a concepção de idiotas funcionais; indivíduos facilmente condicionáveis e amestráveis que ao menos tivessem capacidade mental para seguir instruções, de modo a nos servir com sua mão de obra. Todo lote da geração anterior só sabia fazer uma coisa: procriar. Nesse aspecto, mais pareciam os ratos, cujo DNA foi misturado ao deles com a intenção de torná-los mais adaptáveis aos ambientes inóspitos dos dias atuais. E aqui vale uma ressalva, uma condição ambiental tóxica que fora criada por eles mesmos...”, justificava o coordenador do centro de genética avançada do partido totalitário.
Fato consumado, aquele primeiro projeto de modificação genética feito de modo experimental em um lote de indivíduos da espécie humana, inoculados com o DNA dos ratos, resultara em um completo fracasso. Ocorre que, na ânsia de se criar um protótipo humano com cérebro atrofiado, mas ao mesmo tempo dotado de uma fisiologia adaptável à ambientes urbanos degradados, acabaram por conceber um indivíduo atrofiado e sem cérebro. Eram tão estúpidos que, mesmo depois de adultos, não sabiam se expressar com clareza, e o pior de tudo, tornaram-se viciados em redes sociais, novelas e outros programas à altura de sua estupidez. Também não sabiam escrever ou ler; muito menos compreendiam de maneira lúcida as instruções que lhes eram passadas.
Por isso, de nada serviriam para o Partido Totalitário Central, uma vez que a proposta original era a concepção de uma geração de homens cativos com uma cota mínima de massa encefálica, mas ainda assim condicionáveis, controláveis, facilmente domesticáveis. No entanto, o que se viu foi um lote de homens incondicionáveis e incontroláveis, e isso simplesmente porque não havia espaço em seus cérebros para alojar nenhum resíduo, por mínimo que fosse, de conteúdo cognitivo.
E a causa só foi identificada muito tempo depois, quando o experimento não mais poderia ser revertido. Aconteceu que, embora a porção “Rato” tivesse o propósito apenas de fortalecer a fisiologia humana diante da degradante condição ambiental do planeta, o fato é que o cérebro do animal irracional acabou por ganhar um destaque acima do esperado na constituição psicológica do seu novo hospedeiro.
Eis o motivo pelo qual aquele audacioso plano fora temporariamente deixado lado. Mas, agora a história era outra, e finalmente, tiveram êxito em criar um homem de acordo com aquele projeto inicialmente idealizado. No entanto, foi necessário esperar várias gerações, até porque, como diziam os coordenadores do programa: “O ideal do processo lento é que ninguém irá perceber as mudanças, a lenta, progressiva e irreversível lavagem cerebral...” E foi o que aconteceu.
Para isso, em primeiro lugar, o estado criou condições favoráveis para que o indivíduo perdesse o seu senso crítico, e fez isso ao criar as escolas onde os alunos automaticamente passavam de ano de acordo com a idade, e não mais de acordo com o grau de aprendizado ou a qualidade do seu repertório cognitivo.
“Não precisam aprender a ler ou escrever, basta que estejam aptos a seguir nossas ordens sem questionar...”, comentavam os ministros da educação quando o projeto era apenas embrionário.
E em pouco tempo, à medida que as novas gerações foram chegando, ninguém mais sabia ler ou escrever, e todos achavam aquilo natural. Depois vieram os programas de televisão com suas novelas e dramas do cotidiano; tramas especialmente produzidas pelo estado para criar em todos uma mentalidade dirigida, um pensamento condicionado recheado por padrões comportamentais à base de castigos ou recompensas. Nesse quesito usaram como inspiração as técnicas já largamente usadas no processo de adestramento dos animais domésticos.
E agora, o resultado finalmente podia ser comemorado. Nenhum cidadão em atividade social era capaz de pensar sozinho, agir por conta própria, ou fazer qualquer coisa sem uma orientação ou comando prévio. E o mais importante, haviam perdido por completo o senso de questionamento. Assim, os absurdos e comportamentos sociais bizarros, mesmo os mais extravagantes e insensatos hábitos, agora eram considerados processos naturais dentro de cada mesologia.
Obedeciam sem questionar, trabalhavam para servir ao seu mestre, e nada reivindicavam para si ou para os outros. E ainda foram treinados para agradecer aos bondosos “deuses” pelo fato de estarem vivos, embora se assemelhassem a marionetes biológicas, o cenário perfeito para as metas de qualquer governo totalitário.
E durante as comemorações, na festa de confraternização do grande partido, um dos ministros mais influentes do poder central resolveu apresentar uma nova proposta para os demais. Seria a criação de cotas de indivíduos com cérebro, uma inexpressiva minoria, isso para que pudessem servir de cuidadores para os filhos dos senhores da cúpula dominante.
Entretanto, ele apresentou argumentos para justificar aquela ideia, de modo a dar um embasamento científico e antropológico à sua ousada e pioneira proposta.
“Na antiguidade, segundo pesquisas históricas e antropológicas bem conhecidas, uma classe denominada de Senhores de Engenho, um título de nobreza similar ao nosso, acomodava entre seus escravos, um pequeno lote de servos que faziam o papel de cuidadores ou pais substitutos para seus herdeiros. Era apenas um pequeno grupo. Estes foram acolhidos dentro das casas-grandes, uma versão primitiva dos nossos palácios atuais, recebendo até um tratamento diferenciado quando comparados aos demais vassalos, que nos campos, trabalhavam como animais brutos 18 horas por dia, estes sim, sem direito a nenhum tipo de regalia ou benefícios...”
“Meu caro ministro, muito boa e apropriada esta sua feliz colocação. Sem contar que tal advento nos proporcionaria um serviço escravo mais qualificado, a altura do nosso Status. E agora, o ponto mais importante: teríamos mais tempo livre para usufruir com maior intensidade do nosso precioso e divino lazer, assim como das nossas prazerosas reuniões informais regadas a vinhos raros...”
E assim surgiu a classe dos cativos dotados de um cérebro minimamente pensante. Estes serviam aos seus senhores com mais qualidade e sofisticação, exatamente como fora a proposta do conselho de ministros. Mas, os dominadores, isolados dentro de sua estreita mentalidade assoberbada pela vaidade e arrogância, onde qualquer entidade viva fora do círculo do poder era sumariamente ignorada e desprezada, continuaram a tratar os novos escravos pensantes, agora dotados de um cérebro minimamente desenvolvido, do mesmo modo como já o faziam com a classe dos indivíduos não pensantes e sem cérebro.
E aqueles cativos, vivendo na intimidade dos suntuosos palácios de cada fidalgo daquela elite totalitária, conhecedores dos seus segredos e empáfia, logo se sentiram subjugados e humilhados, sem direito à liberdade. Por isso, em silêncio, se organizaram e se rebelaram. E em pouco tempo os papéis se inverteram. E o subjugado se tornou subjugador. E todo processo se repetia. De um lado os antigos dominados, agora no papel de dominadores, e do outro, os antigos dominadores, agora como dominados.
E passadas muitas gerações após a rebelião dos cativos pensantes, depois de já estabelecidos como a nova classe dominadora, agora subjugando os descendentes do seu antigo dominador, eis que um dos ministros da nova ordem, durante uma festiva reunião da cúpula, dá uma sugestão.
“E se criássemos uma classe de escravos pensantes para nos dar um suporte mais sofisticado? Estes iriam trabalhar apenas para nós, dentro de nossas casas, cuidando dos afazeres domésticos e dos nossos filhos. Mas, é claro que continuariam como escravos. A propósito, isso me faz lembrar de uma antiga tradição muito citada nos livros de história, que é a dos Senhores de Engenho. Naquele contexto, cativos selecionados cuidavam dos herdeiros dos nobres, fazendo um temporário, mas eficiente, papel de mães ou pais...”
E depois de refletir sobre o assunto, após sorver um generoso gole de um raro vinho envelhecido de 200 anos, o gestor comenta: “Excelente ideia; não poderia ser mais oportuna. Além disso, isso nos proporcionaria um serviço escravo mais qualificado, a altura do nosso Status. Agora o mais importante, é que com isso teríamos mais tempo livre para usufruir com maior intensidade do nosso precioso e divino lazer, assim como das nossas prazerosas reuniões informais regadas a vinhos raros...”
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Alberto Grimm - Email: albertogrimm@gmail.com
Publicitário e Escritor. Especialista em Psicologia do Trabalho e Relações Humanas. É também também pesquisador e consultor em Recursos Humanos e em Educação Integral e Consciencial.
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