![]() |
Autor: Alberto Grimm[1]
Conteúdo Revisado e Ampliado: 16 de Janeiro de 2023
Depois das muitas mudanças na genética de tudo que era dotado de vida sobre a terra, muitas coisas aconteceram. Novas espécies animais surgiram. No principio eram apenas animais feitos “sob encomenda” para atender a demanda recreativa das crianças. Sim, a moderna ciência agora era capaz de criar brinquedos vivos, como, por exemplo, um animalzinho novo, como nos joguinhos de computador, onde as crianças misturavam partes de diferentes espécimes para dar origem a algo bizarro, engraçado ou criativo, como pregavam as campanhas de marketing doutrinadoras de crianças.
Agora eles podiam fazer isso com animais de verdade. Era simples, e bastava se dirigir ao balcão de uma das lojas credenciadas e solicitar o animal desejado, por mais estranho e improvável que parecesse. A própria criança podia desenhar o modelo em um dos simuladores disponíveis para isso. Em dois dias estava pronto, já no tamanho desejado, de acordo com as preferências e potencial criativo do cliente.
E por um bom tempo, o sonho de consumo entre as crianças era um modelo que contava histórias na hora de dormir. Era a sensação, o assunto e mimo preferido dos influenciadores digitais, o “Top” dos “Tops”, a “Galinha dos Ovos de Ouro” dos fabricantes e o principal foco das maciças campanhas publicitárias que praticamente obrigavam cada lar com crianças a ter um exemplar. Seus olhos eram de gato, o que o tornava perfeito até para ler no escuro. Sua voz era humana, suave, como a voz de um grande orador, ou oradora, ajustada especialmente para os sensíveis ouvidos infantis. Seus dedos aveludados, assim poderiam acariciar os pequenos fazendo um temporário papel de mãe, pai ou babá.
Use sua imaginação e lá estava o animal correspondente. E se espalharam sobre a terra, se multiplicando, dando origem a outras tantas espécies exóticas. Para aqueles que não gostavam de animais, mas apenas das suas carnes, era possível criar espécimes apenas para o corte, de acordo com o gosto de cada freguês. Podia ser com diferentes sabores, consistências, já temperados, e assim por diante.
Não havia um limite ético estabelecido onde a ciência pudesse afirmar: “Aqui nós paramos; deste ponto em diante não é possível, nem ético, continuar...” E tudo era feito para servir ao novo homem. Este, aliás, modificado geneticamente, de modo a não padecer mais de nenhuma doença. Fato que no princípio fora um grande problema para os médicos, políticos, corporações sectárias e todos aqueles que não mais podiam lucrar ou se promover motivados pelo caos na saúde ou sofrimento somático daquele povo. Sem falar no prejuízo que tiveram as grandes Corporações Farmacêuticas.
Estas, aliás, com estilo e notável elegância, deram a volta por cima, e agora dominavam o império das mudanças genéticas. Lucravam mais do que no tempo das grandes doenças e pandemias, onde o caos predominava. Mas, alguns conservadores, ou saudosistas dos tempos turbulentos, se lamentavam: “Bom mesmo era antigamente, no tempo das grandes pragas, dos bajuladores à nossa volta, e das doenças crônicas, quando sabíamos que nossa medicação além de não curar criava dependentes ainda mais doentes. Dependentes, que eram fiéis e sempre voltavam espontaneamente às farmácias e postos de saúde. Nossa, impossível é descrever o tamanho da saudade que sentimos daqueles dias...”
E os animais criados geneticamente ganharam inteligência. Sensatez não, afinal de contas, tiveram como professores, seus criadores, ou seja, os humanos. E modificaram-se também os insetos, e mesmo os espécimes virais. Mas a história não poderia ter sido escrita de outra forma. Com o aumento da expectativa da vida humana para um patamar quase infinito, logo todos se perguntavam se o paraíso não seria algo semelhante a tudo aquilo que ora, em vida, já desfrutavam na terra.
Sendo assim, não mais era necessário que ninguém se mudasse, ou fizesse uma transição para se tornar inquilino de um plano existencial extrafísico, o que significava morrer, conforme diziam as escrituras sagradas, para então usufruir de tais benesses em um paraíso idealizado de acordo com as preferências de cada hóspede. Não mais havia a necessidade “dessa mudança de ares”, afinal de contas, tudo já estava ali. Tudo que se poderia esperar de um paraíso, e ao vivo, literalmente falando. E o mais importante, pronto para ser degustado imediatamente; sem obrigações, taxas ou rituais; sem filiações sectárias ou a intermediação de nenhum ministro religioso; sem esforço ou idolatrias; sem compromissos penitentes de nenhuma espécie.
E sem mais objetivos existenciais pela frente, e dotados de uma sobrevida quase interminável, encontrar atividades para manter cada indivíduo ocupado, se tornara um grande problema para todas as nações. Achar maneiras criativas para preencher um longo e tedioso dia acaba então por se tornar o objetivo existencial daquela humanidade. Por isso, tudo era permitido.
E Ninguém mais adoecia, nem precisava tomar remédio, nem se curvar aos deuses para obter cura, saúde ou prosperidade, afinal de contas, tudo isso já se possuía, desde o berço, sem nenhuma contrapartida, obrigação, penitência ou ritual a cumprir. Mas, com o tempo, viver eternamente não mais parecia ser uma tarefa tão simples e prazerosa quanto se pensava a princípio.
E o imenso tédio de se viver centenas de milhares de anos, sempre repetindo as mesmas experiências, sem a promessa de um paraíso repleto de novidades a lhes esperar em um lugar incerto, assim como o fato de não ser capaz de se desvincular de uma rotina mecânica e inflexível, levou esse homem à insensatez, e da insensatez à total destruição do seu avançado modelo de mundo.
Por isso sobraram apenas os escombros das grandes cidades, e as cinzas das grandes florestas, assim como o deserto de pedregulhos e lama onde antes existiam os mares, rios e lagos de águas límpidas.
Explorando aquele ambiente sabidamente hostil que restara, onde o perigo poderia estar à espreita dos descuidados, o explorador se deteve no alto da colina e observou pacientemente o cenário desolado, misterioso, silencioso, que não exibia o real perigo oculto em suas sombras. Sombras que, como espectros fantasmagóricos de uma alucinação, se erguiam impassíveis diante de seus olhos atentos.
Ali já fora uma grande e próspera cidade. Milhares de pessoas circulando em suas largas e suntuosas ruas e avenidas, tomadas pelo burburinho das sofisticadas lojas, despreocupadas e imersas em seus mundos particulares, indiferentes, a consumir qualquer coisa, como autômatos programados, até que o dia do “Juízo Final”, sem prévio aviso, chegara.
E apenas os escombros chamuscados em contraste com aquele céu sempre cinzento e sem expressão era o que agora se via. Quem, tomando como referência os dias de glória, imaginaria aquele desfecho como ponto de chegada para tão exuberante e orgulhosa civilização?
E o explorador conhecia bem toda história. Afinal de contas, seus ancestrais viveram entre aqueles habitantes. Foram concebidos a partir da ciência deles. Lembrou das antigas escrituras, onde o homem dito civilizado, que exaltava sua compaixão para com a vida, desprezava os animais ao tê-los como fonte preferida para sua alimentação. Aliás, essa sempre fora uma questão que pessoalmente o incomodara por algum tempo. Se aquele homem se dizia civilizado, por que desprezava a vida dos demais seres vivos? Lembrou que anos atrás, este fora o assunto da sua premiada tese de doutorado.
Do ponto de observação onde estava, era possível ver se esgueirando entre as sombras uma das criaturas híbridas ainda existentes. Era meio homem e meio verme; um espécime que evoluíra naturalmente. Um desdobramento do próprio homem bárbaro que restara após a destruição. Como a genética de ambos, verme e homem era semelhante, o processo de fusão fora um evento espontâneo; um processo seletivo natural que o permitira adaptar-se ao novo e inóspito ambiente, criado por ele mesmo. Assim surgira o “Homus-vermes-rasterus”, uma temível espécie predadora de todos os demais animais, e até da própria espécie.
Tratava-se de um inimigo natural de todos, por isso todo cuidado com ele era pouco. Mas, a exemplo do seu antecessor, era pouco inteligente. Preocupava-se apenas em caçar, e depois comemorar suas conquistas, sem se preocupar com o dia seguinte. Particularmente, pensava o observador, aquela espécie era uma ameaça ao equilíbrio de qualquer mundo que prezasse pelo incondicional respeito à vida e harmonia. Por isso deveriam ser mapeados para que depois fossem isolados das demais espécies. E essa, naquele momento, como observador qualificado, era a sua missão.
Felizmente, graças às mesmas mudanças genéticas responsáveis por tudo que acontecera, agora a espécie predominante naquele mundo era outra. Um novo “ser”. Este, aliás, mais respeitador do seu próximo; mais coerente em seus princípios éticos. Lembrou que antes do “grande dia”, os pioneiros de sua espécie foram subjugados e cativos do poderio e crueldade dos antigos habitantes, os ditos humanos civilizados, servindo apenas como material biológico, cobaia viva para suas pesquisas. Ele, um simples Rato Branco, espécie criada em laboratório, agora com maior capacidade intelectual e mente superior a dos antigos e cruéis dominadores.
Com maior estatura, medindo em média quarenta centímetros de altura e caminhando naturalmente sobre duas pernas, com braços longos e mãos dotadas de polegares opositores plenamente desenvolvidos, sem cauda e com um rosto de aspecto humano juvenil, deixara de rastejar desde tempos imemoriais, um caminho inverso ao que seguiu seu antigo, bárbaro e insano opressor.
Sem perder mais tempo, transmitiu à sua base o local que deveria ser considerado de alto risco para os seus, uma vez que a presença do temível “Homus-vermes-rasterus” fora ali detectada.
Os Contos Reflexivos são reproduzidos com exclusividade com a permissão do Site de Dicas.
[1]
Alberto Grimm - Email: albertogrimm@gmail.com
Publicitário e Escritor. Especialista em Psicologia do Trabalho e Relações Humanas. É também também pesquisador e consultor em Recursos Humanos e em Educação Integral e Consciencial.
O autor não possui Website, Blog ou página pessoal em nenhuma Rede Social.
Mais artigos do autor em: Site de Dicas - Educação Integral e Consciencial