Autor: Anne Marie Lucille[1]
Publicado: 02 de Agosto de 2024
No entanto, ao final de tudo, sabemos bem que a verdadeira intenção dos nossos atos assistenciais, de fato, é o nosso próprio beneficiamento, embora, eufemisticamente, quase sempre sejam apresentados como oferendas ou aportes puramente altruístas.
Dar para receber faz parte dos costumes de todas as tradições ou culturas humanas civilizadas. Socialmente, aparentemente, não há gesto de caridade, benevolência ou ato de boa vontade, cujo desfecho final não tenha a autopromoção ou desejo por mérito como motivação capital.
Acreditamos que apenas nossa interferência é capaz de fazer diferença na condução da humanidade, por isso mesmo, a depender do tamanho do mérito conquistado, sempre ficamos no aguardo de uma régia e proporcional recompensa, seja um aporte material imediato ou espiritual a longo prazo.
Entretanto, talvez a questão mais importante seja descobrir como, ou por meio de quem, vamos saber do que se trata.
Como se tudo isso não bastasse, depois de tomar conhecimento da nossa missão terrena, ainda nos resta outra questão: O que determina o início e o fim dessa misteriosa obra ou apostolado? Que autoridade ficará encarregada de conferir, e finalmente bater o martelo dando por encerrado todo esse processo existencial?
Afinal de contas, em nosso mundo, tudo que existe tem uma função, ou motivo existencial, um início e um fim.
Em nossa vida diária, para a fabricação ou confecção de bens materiais capazes de atender nossas demandas, o processo funciona mais ou menos segundo estes critérios. Criamos porque cada objeto tem uma função, uma causa, e essa destinação nós conhecemos bem. Eles existem porque existimos. Mas, será que a mesma regra se aplicaria em relação à vida humana? Isto é, poderá servir de modelo ou parâmetros para explicar as razões da existência de cada homem?
Em nosso mundo lógico e analógico há um motivo para tudo; uma função ou utilidade. Sem essas prerrogativas não teria sentido a existência de nada. O existir de algo sem utilidade seria ilógico, incoerente, absurdo, insensato, ao menos, segundo nosso ponto de vista.
Por exemplo, em nosso mundo de funcionalidades, cada item criado ou concebido tem um claro propósito, e isso representa, seu Motivo Existencial.
Depois de feito, aquele item, para sempre, deverá passar por vários processos de atualizações e mudanças, ao qual poderão ser acrescentadas novas funcionalidades; menor ou maior durabilidade, tudo isso, a depender de sua utilidade, necessidade, interesses do fabricante ou consumidor, e assim por diante. Atualizar não significa refazer o projeto, mas apenas lhe acrescentar as devidas correções, detalhes fundamentais para aumentar sua vida útil, viabilizar e justificar seu uso regular. Refazer é fazer um novo. Poderá ter características semelhantes ao modelo anterior, mas não é o mesmo, embora o possamos considerar como um similar.
Função existencial, eis o ponto principal da nossa questão. Qual a utilidade de uma entidade humana, não do ponto de vista da mesologia ou tradição, mas da natureza? Eis uma dúvida recorrente. Propostas ou sugestões sociais existem aos milhares, e cada nação já se encarregou de protocolar e homologar seus próprios repertórios ou respostas.
Uma profissão, um nome, uma posição dentro da grade social, eis o que significa nosso atual Objetivo de Vida. Objetivo de Vida, de acordo com nossa cartilha social, significa, dentre outras coisas, gravar nosso nome como autor de alguma obra relevante, destacar-se como cidadão exemplar ou profissional bem sucedido, e assim por diante. E todas essas coisas resumem de maneira genérica a meta existencial vulgar destinada a cada indivíduo.
Tentar resolver os problemas do dia a dia, isso tem sido nossa eterna angústia. Não sobra tempo para mais nada, e eles, os problemas, brotam de todos os lados; do passado, do presente, e também do futuro. Aliás, a maioria deles estão lá, no incerto futuro. Desse modo, solucionar os problemas, nossos e dos outros, nesse momento, parece ser nossa mais importante função existencial.
Trabalhamos para suprir nossas necessidades básicas, e o trabalho se torna uma obrigação, assim como a educação dos filhos, e a nossa. E há também a questão da saúde, e as diversões, o culto religioso, os incessantes Conflitos. E tudo isso acaba por se transformar em problemas que precisam urgentemente de resolução.
E o próprio viver, que faz parte do pacote, torna-se um grande problema. Não há então os pequenos, médios ou grandes problemas que demandam solução, mas, ao invés disso, o inteiro viver é esse problema. Assim, resolver essa questão se torna nosso Objetivo de Vida. Por isso precisamos de motivação, de crenças, de guias e salvadores. E tudo isso se transforma em mais problemas. E parece que a cada passo, quanto mais buscamos uma solução, mais aumenta a confusão.
Trata-se de um labirinto dotado de apenas uma porta de entrada, e quando nele adentramos, nem sempre por nossa vontade, esta se fecha sem deixar vestígios de que um dia tenha existido. Por isso, além de nunca encontrarmos uma saída, também não sabemos como ali adentramos. E lá dentro, restam apenas alternativas de como aprender a viver naquele ambiente que se assemelha a uma fortaleza de muros invisíveis, onde se cultuam apenas problemas.
E todas nossas propostas existenciais se limitam às condições do labirinto. E se nosso mundo está limitado ao perímetro do labirinto, fica subentendido que não existe um lado de fora, outro lugar para onde possamos ir?
No entanto, agora temos uma pista. Sabemos que nada existe sem motivo ou função. Assim, partindo desse princípio, fazendo um estudo profundo de nós mesmos, um autoenfrentamento, sem a interferência de guias, preceitos, paradigmas, conceitos doutrinários ou religiosos, protocolos ou fórmulas prontas, a própria busca já não poderia constituir esse objetivo? Podemos começar por aí.
[1]Anne Marie Lucille - annemarielucille@yahoo.com.br
Antropóloga e Pesquisadora na área da Psicopedagogia. Atua como consultora educacional especializada em Educação Integral e Consciencial.
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