Autor: Anne M. Lucille e Ester Cartago[1]
Publicado: 02 de Agosto de 2024
Há também a adequação às normas, aos costumes não aceitos e aceitos, e todas essas coisas fazem parte do nosso processo cognitivo; e a tudo isso chamamos de educação. Assim, um indivíduo que conhece e pratica as normas é considerado educado, Disciplinado, formalmente enquadrado, moralmente adequado e integrado. Sobre os motivos pelos quais as normas precisam ser respeitadas, as crianças ou os jovens, pelo menos em sala de aula, quase nunca são informados.
Como ainda não possuem personalidade, logo, esse conjunto de normas, depois de inserido em seus cérebros, atuarão como diretrizes, protocolos, gabaritos de conduta. E tudo isso irá se transformar em comportamentos. Estará assim criada sua identidade individual. Então o jovem pode afirmar: “Agora eu sou alguém.”
Segundo essa conjuntura, disciplina quer dizer: seguir à risca o que foi estabelecido como regra. Acrescenta-se a essa base teórica a experiência de vida, e aos poucos o indivíduo ganha em definitivo a personalidade que o representará como parte integrante no meio onde vive. Terá um nome, funções a exercer; um posicionamento mental, ideais e ideias. Acreditará que é único em suas conclusões, preferências, aspirações e convicções. Não terá dúvidas de que é original e inteiramente livre para decidir o que deve fazer da sua vida.
Terá consigo o ideal de que o mundo seria melhor, se psicologicamente fosse semelhante a ele próprio. Terá um conjunto de crenças, manias e desejos que julga tratar-se de coisas absolutamente necessárias e indispensáveis ao seu viver. Acreditará que um dia irá se realizar como pessoa, tudo isso, se conseguir conquistar cada item que a sociedade decretou como requisitos, prerrogativas, objetivos imprescindíveis para que sua felicidade e plenitude existencial viessem a se concretizar.
Não percebe o quanto está comprometido em conquistar, a qualquer custo, o ideal de felicidade que lhe prescreve o meio social, onde quer que viva. Há objetivos bem definidos que precisa cumprir. Deverá também se consagrar em sua profissão e em suas relações pessoais, ou como multiplicador de costumes eleitos como edificantes e necessários. Terá ainda a nobre missão de atuar como defensor intransigente dos tabus e crenças, os objetivos com os quais tenha empatia e que ora realçam seu comportamento e caráter, assim como suas emoções e todo seu modo de pensar, sentir, desejar e agir.
Condicionado por tudo isso, acredita agora em sua própria importância. E assim, fascinado com seu status pessoal, se julga merecedor de algo mais, embora não saiba claramente qual é essa coisa. Por isso espera que outros lhe digam do que se trata. Limitado pelas espessas paredes da individualidade, torna-se obtuso, incapaz de enxergar o semelhante que está ao seu lado como uma entidade igual em conflitos, em aflições e desejos. Ao contrário, aprendeu desde cedo que seu próximo é também seu concorrente, um sujeito contra quem, por algum motivo ainda indefinido, deverá lutar para conquistar e manter seu espaço.
Foi assim que aprendeu em casa tão logo pôs os pés fora do berço, e tudo isso foi reforçado na escola, em seu templo religioso exclusivo, e em todos os demais espaços onde foi capaz de por os pés, olhos e ouvidos. Precisa chegar primeiro, aprender mais rápido, obter mais reconhecimento público, e como obstáculos para todas suas conquistas, os demais indivíduos à sua volta, doravante serão considerados adversários ou inimigos.
Aprendeu segundo essa cartilha, e isso também ensinará aos seus descendentes. E apesar de infeliz e com medo do fim iminente, não tem coragem de parar e refletir; de questionar por que não pode ser livre para pensar e decidir; para caminhar e errar; para simplesmente sentir sem interpretar. Livre de dogmas, sem a esmagadora influência dos guias, das autoridades censoras ou religiosas que acabam por conduzir, embrutecer e atrofiar quase todas suas emoções, fossilizando e entorpecendo sua sensibilidade.
Não percebe que o tempo gasto para estudar, trabalhar e conseguir alcançar seus objetivos lhe toma toda a vida. Não há espaço para mais nada. Logo uma conquista é substituída por outra, e outra. E assim passará todo seu viver, sempre ocupado, sonhando com o dia onde terá longas horas de absoluta ociosidade; onde finalmente poderá sentar-se confortavelmente à frente de sua televisão e deixar-se levar pela fantasia alheia.
Mas é incapaz de perceber que já vive desse modo, encarcerado nas lacunas e intervalos do escasso tempo livre, quando retorna do trabalho, da escola, do lazer; ou simplesmente quando se julga ocioso
Ocorre que em sua mentalidade condicionada pelo padrão das tradições, não há espaço nem motivação para questionamentos e reflexões. Todas as horas dos seus dias estão repletas de atividades, de compromissos, de diversão, de objetivos que precisam ser alcançados a todo custo. Sua vida se tornou uma perfeita engrenagem de natureza mecânica; um ritual diário inflexível, regido pelos dias da semana, pelo relógio.
O meio lhe diz o que fazer, porque deve fazer, quando o deve. Enquanto isso, no fundo, ainda não se deu conta de que o tempo perdido não poderá jamais ser recuperado. Não consegue enxergar esse fato, pois está ocupado demais; comprometido em atingir as metas que julga necessárias à sua felicidade, liberdade, ou plenitude existencial.
Desse modo, será fisgado pelo sonho de um ideal impreciso, sob o jugo de protocolos estabelecidos pela tradição, onde está escrito que tudo isso é coisa necessária, onde se inclui a obrigação de trabalhar sem parar, enquanto força tiver; de manter-se ocupado durante toda sua juventude, até o dia em que seu vigor físico irá declinar. Agrilhoado por tantos compromissos, como poderá enxergar o fato óbvio de que, ao se aposentar, já não será mais jovem, nem terá o mesmo entusiasmo de antes? Ainda demora em perceber que o tempo lhe será o bem mais precioso, mas agora, infelizmente, já não o possui, como antes.
Não terá mais tempo, e agora vem o fato mais dramático: não se sente mais motivado, nem tem a força que na juventude usou para conquistar sua independência, ou suposta liberdade. Perceberá que ainda não é livre, nunca o foi, talvez nunca o seja. Sua fisiologia mudou, suas forças físicas e mentais caducam; seu ímpeto acabou, será agora cativo de si mesmo e de suas limitações. Sonhará com um mundo melhor, não porque não tenha vivenciado bons momentos, mas porque continua pensando em liberdade, a mesma liberdade que um dia a sociedade prometeu que teria, caso trabalhasse com afinco, até o esgotamento de sua vitalidade.
A angústia até que poderá esconder dos outros, mas jamais de si mesmo. Saberá com clareza que não é feliz; não o pode ser, pois muita coisa que a “cartilha” estabelecia como necessária para a conquista desse estado de graça acabou se perdendo pelo caminho. Publicamente, por uma questão de fidelidade com seu Ego, que teima em sentir-se importante, meritório, superior aos demais, jamais irá admitir que não desfrutou de uma vida plena, repleta de felizes experiências.
E dirá que está pronto para ir embora, seja para onde seu imaginário embriagado pelas ilusões o conduza. Poderá admitir-se realizado, tendo atingido o mais alto degrau de sua plenitude existencial. É, no entanto, incapaz de perceber que os devaneios pendentes, as aspirações de que exista outra vida além da sua, um mundo repleto de benesses, conforme categoriza suas crenças, sinalizam claramente que ainda é infeliz.
Como podemos ser livres se a simples menção de um objetivo, a realização de um desejo, a simples busca por uma permanente satisfação, ainda são nossos mais marcantes cativeiros? Haverá algum espaço para manobras quando se nasce com a vida inteira já programada e invariavelmente presa a um determinismo social? Assim são os nossos objetivos, pensamentos, crenças, emoções, destino. A verdade é que todas essas cláusulas já foram organizadas, protocoladas e homologadas pela tradição de cada mesologia, antes do nosso nascimento.
Finalmente, de que servirá ser bem sucedido no fim da vida, quando a espera por dias melhores num idealizado e imaginário paraíso contraria de maneira irrefutável esse suposto status de êxito? Eis, objetivamente, o nosso corrente sonho de felicidade e suposta liberdade. Vale refletir sobre o assunto.
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[1]Anne Marie Lucille - annemarielucille@yahoo.com.br
Antropóloga e Pesquisadora na área da Psicopedagogia. Atua como consultora educacional especializada em Educação Integral e Consciencial.
Ester Cartago - estercartago@gmail.com
É Psico-orientadora especializada em educação Integral e Consciencial, Antropóloga, pesquisadora de Fobias Sociais e também escritora. Torna-se agora mais uma colaboradora fixa do nosso site.
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