Autor: Anne M. Lucille e Ester Cartago[1]
Publicado: 02 de Setembro de 2024
No entanto, sabemos que é assim. É a prática comum desde incontáveis gerações. É a conduta aceita como modelo cognitivo perfeito, autenticada e legitimada pela pedagogia de nossa civilização e homologada pelas academias de educação, especialistas, cientistas sociais, apóstolos ideológicos, ministros e gurus sectários.
Trata-se de um mundo utópico, de faz de contas, onde as distorções não existem e os problemas e dilemas humanos estão ausentes. E ali os sonhos se concretizam sem depender do esforço pessoal e apenas as coisas que dão certo são dignas de referência. E naquele reduto onde a realidade é sumariamente ignorada, onde o mal é retratado como uma palavra vulgar cujo sentido passa longe do seu verdadeiro significado, o idealismo e a fantasia dos chamados contos de fadas predomina.
Os contos de fadas, como nós os conhecemos, ganharam status e importância na baixa idade média, ou idade das trevas, em meio à repressão religiosa e injustiças sociais praticadas pelos governantes déspotas. Embora desconheçamos sua origem, naquela época tomaram a forma que se manteve íntegra até nossos dias.
E tudo isso graças aos devaneios de alguns escritores, cuja intenção era entreter um público carente de sonhos, sufocado, encarcerado, esmagado pela tirania dos costumes daqueles tempos e sem uma ideia clara do significado do conceito de “luz no fim do túnel”. E desde o princípio sempre foi uma deliberada concepção surreal, uma fuga à realidade opressora; uma fantasia libertária que logo, no imaginário de cada um, se tornaria um sonho realizável.
E eis a base de nossa pedagogia ocidental. E só resta à criança, à revelia da sua vontade, absorver essa tradição. Vivemos em um mundo de constantes desafios, imersos em disputas e conflitos sem fim, onde os problemas e as múltiplas atividades preenchem todas as horas do nosso dia, exigindo a cada dobra do tempo um indivíduo mais flexível, qualificado e determinado. E por trás de tudo isso há a entidade humana sem um Sólido Objetivo de Vida, ou mesmo imaginário, à sua frente.
Para enfrentarmos um mundo cada vez mais dramático, inóspito e conflituoso, precisamos dobrar nossos esforços. Soluções nunca são respostas espontâneas ou involuntárias, e sempre demandam disciplina, organização, qualificação e um desmedido esforço pessoal. E diante de problemas milenares que se perpetuam através de gerações, precisamos de novas abordagens e não de velhas práticas.
O que se torna impossível quando continuamos sob jugo de um modelo acadêmico tirado dos contos de fada, onde um homem passivo sonha com as soluções que virão de fora, sob patrocínio de alguma entidade cósmica, a partir de um condão mágico, sem demandar esforço algum de sua parte.
E eis o grande problema da criança educada sob a unção dos contos de fada. Depois de crescida ela não irá esquecer completamente seus sonhos infantis, onde diante de uma crise uma fada com seu condão mágico se prestaria a resolver todos os seus problemas. É difícil esquecer tamanha fantasia, especialmente quando está repleta de promessas semelhantes a aquelas que já preconizam suas atuais crenças sectárias.
Ocorre que as crianças, depois de crescidas, irão enfrentar problemas concretos, questões sérias que nunca fomos capazes de erradicar, e conhecer todo drama desde cedo talvez fosse o caminho mais lógico e inteligente para ensiná-las a lidar com essa trágica realidade. Cientes desde cedo, teriam mais elementos para decidir pela continuidade ou não desse caos, já que nós, por incompetência ou acomodação, desde tarde, nunca paramos para fazer essa escolha.
Para que uma criança seja capaz de resolver seus conflitos do futuro, que são os nossos atuais, desde o princípio, precisarão aprender a conviver com eles. Trata-se de um gesto de bom senso e respeito, caso tivéssemos qualquer um dos dois. Assim, deveríamos lhes informar sobre os conflitos humanos e suas causas. Estas coisas as crianças deveriam aprender conosco, na segurança da nossa companhia, proteção e carinho.
Ignorar estas coisas é desprezar uma oportunidade ímpar de potencializar a cognição dos nossos filhos. Sem nosso aporte, onde as crianças irão buscar esse esclarecimento? Entrarão no mundo a exemplo de indivíduos que adentram à mata sem repelente por ignorar a existência de mosquitos nocivos; ignorantes, vulneráveis, suscetíveis de repetir nossos erros.
Educar para a vida não seria ensinar como sair dessa complexa confusão da qual, embora não sejamos autores, atuamos como fiéis multiplicadores? Será que podemos viver sem conflitos e sem medos? Teremos, de fato, tal capacidade?
O fato é que, mesmo dotados desse potencial, ainda não fomos capazes de colocá-lo em prática. Se nos falta qualificação para mudar um mínimo, de que forma essa transformação irá ocorrer no mundo dos nossos filhos, uma vez que irão herdar nossa atual mentalidade patológica, inclusive nossa incompetência em resolver nossos mais triviais conflitos nos interrelacionamentos?
Acordar com lucidez significa simplesmente parar de sonhar. Parar de acreditar que as fadas virão do seu reino numa espécie de cruzada sacra, com o único propósito de transformar, através do seu encantamento, todo desarranjo criado por nós. Se acordarmos a tempo ainda há uma chance real de mudar. Despertos, temos a oportunidade de ensinar às nossas crianças como construir. Na condição de não despertos, nosso modelo cognitivo é a destruição.
As crianças precisam conhecer um pouco sobre a vida que terão pela frente. É fundamental que aprendam sobre seus próprios pontos fracos, suas possíveis falhas e limites. Precisam saber que suas mães, periodicamente, quando sofrem bruscas mudanças em seu estado humoral, estão a passar por processos orgânicos naturais, que a moderna ciência chamou de Tensão Pré-menstrual.
Trata-se de um gesto sensato capaz de evitar inúmeros conflitos internos com seus filhos, que por não compreenderem a brusca mudança de comportamento da pobre matriarca, logo tiram conclusões equivocadas. E na maioria das vezes irão considerar aquele estado de impaciência e intolerância como confronto pessoal, o que tende a afetar todo equilíbrio e harmonia dentro do microcosmo familiar.
As crianças precisam saber desde cedo o que significa ficar velho, afinal de contas, isso também faz parte do seu provável futuro. Sendo a velhice um processo natural e fisiológico, involuntário, irreversível e inevitável, elas não poderão escolher e mudar seus destinos. Então, por que esconder delas essa condição como se fora uma espécie de evento bizarro ou praga virulenta?
Não seria uma maneira inteligente de criar entre jovens e idosos um maior vínculo de empatia e respeito? Isso decerto iria motivar uma maior aproximação entre os diferentes grupos etários, revertendo a óbvia indiferença dos jovens em relação à velhice, uma postura que em nossa civilização mais se assemelha a um costume social obrigatório. E o mais importante, funcionaria também como um alerta para o inevitável estágio etário que aguarda a maioria deles.
É bom lembrar que, a Lavagem Cerebral do mundo, com suas distorções e absurdos, começa cada vez mais cedo. Nossos filhos precisam demonstrar cada vez mais cedo uma predisposição natural ao questionamento.
Se os pontos positivos dos seus temperamentos não são regados e potencializados, e sem Liberdade para Duvidar e Investigar, jamais terão coragem para pensar fora da caixa e efetuar as mudanças necessárias. E ali permanecerão passivos, a exemplo de nós, sem objetivos concretos ou esperanças, amargos pelas ilusões desfeitas, frustrados pelo que deixamos de fazer.
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[1]Anne Marie Lucille - annemarielucille@yahoo.com.br
Antropóloga e Pesquisadora na área da Psicopedagogia. Atua como consultora educacional especializada em Educação Integral e Consciencial.
Ester Cartago - estercartago@gmail.com
É Psico-orientadora especializada em educação Integral e Consciencial, Antropóloga, pesquisadora de Fobias Sociais e também escritora. Torna-se agora mais uma colaboradora fixa do nosso site.
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